Automedicação e a internet
Automedicação
Segundo a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a automedicação é a utilização de medicamentos por conta própria ou por indicação de pessoas não habilitadas, para tratamento de doenças cujos sintomas são “percebidos” pelo usuário, sem a avaliação prévia de um profissional de saúde (médico ou odontólogo).
A automedicação é uma prática comum do consumidor não só no Brasil, mas ao redor do mundo todo. Em países com um sistema de saúde precário (caso do Brasil e outros países subdesenvolvidos), ir direto à farmácia para obter um medicamento é mais fácil que conseguir um atendimento médico, para este sim, prescrever o remédio adequado para a patologia. Nesses países a maior parte dos remédios consumidos pela população é vendido sem receita médica. Contudo, mesmo em países desenvolvidos, vários medicamentos de uso mais simples e comum (analgésicos, antitérmicos, etc.) são encontrados em farmácias ou supermercados, e podem ser comprados sem a necessidade de uma receita médica.
Debate-se que um certo nível de automedicação é necessário, dado o fato que a automedicação contribui para reduzir a utilização do sistema de saúde pública, já que o consumidor deixa de ir ao médico se o medicamento tiver o efeito desejado. O contraponto disto, é que a intoxicação por medicamentos ocupa o primeiro lugar no Brasil dentre as causas de intoxicação, à frente dos produtos de limpeza, dos agrotóxicos e dos alimentos estragados. Consumidores intoxicados trazem ainda mais gastos para os cofres públicos, com custos de internação e tratamento, dada à gravidade da situação podendo levar o paciente a óbito. Apesar do consumo de medicamentos para automedicação variar de país para país, o mesmo fenômeno ocorre no mundo todo. Dados europeus indicam que, em média, 5,6 pessoas por farmácia e por semana fazem uso indevido de algum tipo de medicamento.
Antes da popularização da internet, o consumidor consultava seus familiares, amigos e o farmacêutico antes de comprar qualquer medicamento com o intuito de se automedicar. As farmacêuticas também investiam valores substanciais nas mídias tradicionais para divulgar suas drogas e a finalidade delas.
Para obter alívio dos incômodos que o afligem, em especial os mais comuns como gripe, febre, dor de garganta, o consumidor seguia por muitas vezes a orientação leigos para o tratamento da patologia. A propaganda acompanhava o discurso do uso indiscriminado, não alertando em momento algum o consumidor que o medicamento sem indicação médica pode acarretar danos à saúde.
No Brasil, somente após o ano 2000 com a entrada da RDC 102/2000 a frase “ao persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado” passa a ser obrigatória nas propagandas de medicamentos. Ainda assim, ela leva o consumidor ao entendimento de “consuma primeiro e se não funcionar consulte um médico”.
Apesar da ANVISA regulamentar a propaganda de medicamentos no Brasil, pouco pode-se fazer contra a infinidade de informações que o consumidor do século XXI tem acesso.
Se observamos o comportamento do consumidor das gerações anteriores ao aparecimento e a popularização da internet, assim como os hábitos de consumo mudam, a relação com a automedicação também varia de geração para geração.
Baby boomers são enormes candidatos ao abuso e uso indevido de medicamentos que necessitam de prescrição médica. Muitos dos consumidores que fazem partes dessa geração faz uso de medicamentos para a manutenção da saúde (controle da pressão arterial ou colesterol, por exemplo) e isso os torna mais propensos ao uso de outras drogas, como medicamentos para dormir, analgésicos, etc.
A geração X viveu a popularização dos medicamentos, muitos deles podendo ser comprados sem regulamentação alguma, prática essa que estimulou o consumo indiscriminado de remédios para as mais diversas patologias. No ano de 1999, a geração X já era a base da economia mundial e assistiu a Tony Soprano, protagonista da série Família Soprano, utilizar Prozac para combater seus problemas no trabalho, seus ataques de pânico e problemas familiares. A trama acompanhava a carreira criminosa de Tony e seu progresso ou regresso aliado ao tratamento. Nessa mesma época a internet começa a ganhar força e a fazer parte do cotidiano das pessoas.
A chegada da internet trouxe ao consumidor mais uma fonte de consulta além dos pares, farmacêutico e propagandas quando tratamos da automedicação.
Automedicação e a internet
Manoel Bandeira
PNEUMOTÓRAX
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
– Trinta e três…
trinta e três…
trinta e três…
– Respire.
– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
O poema de Manoel Bandeira é de uma época em que a tuberculose era conhecida como “a peste cinzenta” ou “doença do peito”. Trata-se de uma conversa durante uma consulta médica de um diagnóstico irreversível. Hoje, ao buscar o termo no google, em um segundo aparecerão 143.000 ocorrências como resposta. Os versos do poema de Manoel Bandeira devem aparecer em algum lugar depois da quinta página de resposta. Antes deles virão inúmeros sites com informações sobre a doença: o que é, quais os sintomas, como tratar, sites relacionados, páginas de consultórios médicos, fóruns de discussão, etc.
Segundo a pesquisa TIC Domicílios, aproximadamente 46% dos usuários de internet no Brasil pesquisam informações sobre saúde na rede. Ainda segundo a pesquisa, 62% das pessoas que pesquisaram sobre uma patologia perceberam que as informações disponíveis na rede não batiam com as do especialista. No mundo, pesquisas relacionadas à saúde correspondem a 5% do volume de buscas no Google.
A demora em conseguir uma consulta com um especialista, falta de tempo ou mesmo curiosidade são vários os motivos que podem levar as pessoas a se consultar pela internet.
Ao pesquisar algum sintoma ou o nome de uma patologia específica na internet, o consumidor se depara com uma infinidade de páginas sobre o assunto e com fontes duvidosas. Essas páginas descrevem as doenças e indicam drogas para o tratamento, levando o paciente ao autodiagnóstico e consequentemente à automedicação. Erros de dosagem ou de medicação podem agravar o problema ou provocar outros piores. A situação tende a ficar ainda pior se o autodiagnóstico é errado.
Se analisarmos o comportamento das gerações Y e Z, que cresceram ou nasceram com internet, é possível notarmos uma relação diferente das gerações anteriores com a própria saúde e consequentemente com a automedicação. Consumidores dessas gerações tem como fiel companheiro o Google ao surgir qualquer incomodo ou situação anormal, que levante a suspeita de uma possível doença. Uma breve pesquisa, um possível diagnóstico, uma indicação de tratamento, uma loja virtual com o medicamento disponível e assim podemos traçar o caminho dessas gerações rumo à automedicação. Não que essa prática seja exclusiva das gerações mais novas, dado que Baby Boomers e consumidores da geração X também acessam a rede, porém esses fazem menos uso das ferramentas disponíveis na internet.
O comportamento de pesquisar em excesso sobre saúde na internet, ocasionou o surgimento da hipocondria digital: um mal contemporâneo batizado de cybercondria. Um fenômeno que preocupa a classe médica, porque além de causar o autodiagnostico e a automedicação, pode agravar o quadro para ansiedade e síndrome do pânico.
A cybercondria acontece por exemplo, quando em uma simples pesquisa sobre determinado sintoma faz com que a pessoa acredite que sofre de uma doença grave. Um mesmo sintoma pode levar o paciente ao diagnóstico de um câncer ou de um resfriado.
Além do enorme volume de informações disponíveis na rede, o consumidor de hoje tem também a possibilidade de adquirir medicamentos através do e-commerce de farmácias sem a necessidade de prescrição médica (salvo raras exceções como medicamentos tarja-preta e antibióticos). O aumento do número de consumidores ativos virtualmente no mundo alavanca também o número de compradores de medicamentos na rede.
A pesquisa do medicamento “Allegra D”, por exemplo (produto tarjado como venda apenas com prescrição médica), resulta na primeira página do Google com 4 respostas de drogarias comercializando o remédio sem a solicitação de receita alguma. Além da enxurrada de informações a qual o consumidor está exposto, há ainda o agravante da fácil obtenção de medicamentos ditos vendidos apenas se prescritos por um médico.
A proibição da venda de antibióticos sem prescrição médica é um reflexo do consumidor que tem a sua disposição um bombardeio de informações. Com o aumento do uso indiscriminado dessa classe de medicamentos, a ANVISA optou por restringir a venda com o intuito de evitar intoxicações e o aumento da resistência das bactérias existentes.
Por outro lado, com informações de qualidade o cidadão se torna mais autônomo e conhecedor de si próprio. O acesso a informações técnicas e científicas pode facilitar a percepção de quadros graves, possibilitando ao paciente a busca do atendimento médico. Ter o conhecimento ampliado sobre determinado estado de saúde é benéfico, pois permite uma melhor compreensão do corpo humano e de seu funcionamento.
Na busca de melhorar a qualidade das informações disponíveis na internet, o Google em parceria com o hospital Albert Einstein lançou em 2016 um novo serviço para os usuários do site: informações de saúde com a chancela de profissionais do hospital. O aprimoramento da busca tem como intuito evitar a automedicação, trazer informações mais precisas e direcionar os usuários na busca do atendimento correto. É possível ainda baixar o conteúdo em pdf para levá-lo ao profissional médico.
O serviço também está disponível em outros locais do mundo, com parcerias de entidades regionais.
Tal iniciativa é um importante passo na relação do consumidor com as informações disponíveis na rede sobre saúde, patologias e medicamentos, minimizando a possibilidade de equívocos e conscientizando o mesmo da importância do veredito médico antes do início de um tratamento.
Conclusão
Através do estudo do comportamento do consumidor em busca de informações sobre saúde e a automedicação é possível concluir que a prática de consultar os pares ou o farmacêutico a respeito da saúde e de medicamentos ocorre desde a popularização dos medicamentos. O advento da internet aumentou de maneira exponencial a quantidade de informações a qual o consumidor tem acesso. Tal fato o tornou autossuficiente, não havendo mais a necessidade de uma opinião pessoal, seja dos familiares, farmacêutico ou do próprio médico.
O empoderamento do consumidor na sociedade atual e a infinidade de conteúdo disponível na rede sobre patologias e formas de tratamento é um perigoso cenário para a população. Uma vez que não se vê necessidade em consultar um especialista, o consumidor tende ao erro utilizando a internet como se tudo que ele encontra fosse verdade absoluta e chancelado por profissionais da área.
Os consumidores de gerações crescidos e nascidos na era digital sofrem um pouco menos com essa má influência, dado o fato que a geração Y e Z é mais acostumada a filtrar o tipo de informação que consomem na internet, tornando-os menos suscetíveis à consulta de sites com conteúdos duvidosos ou errôneos.
A preocupação de empresas como o Google em apresentar informações verdadeiras e assinadas por especialistas representa um avanço na qualidade do conteúdo ao qual o consumidor tem acesso. Iniciativas como essa contribuem para que o consumidor se torne de fato empoderado, conhecedor e capaz de racionalizar de maneira mais eficaz a manutenção da própria saúde.